sexta-feira, 19 de abril de 2013

Porcas, parafusos e a totalidade do ser humano



Ontem pela manhã, esperando a hora de sair de casa para mais um dia de trabalho, resolvi dar uma passadinha no Facebook e procurar qualquer novidade para passar o tempo. Eis que deparo com a figura acima, compartilhada por um ex-aluno da faculdade.

Em um primeiro momento o que mais me indignou na linguagem metafórica foi pensar que uma porca com um parafuso são mais “casal” do que dois seres humanos. Comentei:
“Na sua concepção uma porca com um parafuso são mais "casal" do que dois homens ou duas mulheres?”

Fechei o Facebook e segui minha agenda, com aquela informação martelando na cabeça. De súbito, em determinado momento do dia, me ocorre um pensamento muito mais forte: de acordo com a “concepção” de quem montou a imagem, o pênis – representado pelo parafuso – e a vagina –representada pela porca – sintetizam a diferença entre homem e mulher e, portanto, resume-se o ato sexual na penetração do pênis na vagina. A comparação é, além de obviamente infeliz, degradante inclusive às pessoas de orientação heterossexual.

Talvez o tal (ex) aluno não tenha se fixado à citada reflexão. O rapaz abandonou nosso curso e não cursou comigo a disciplina “Análise do Discurso”. Pode ser (não estou afirmando, apenas supondo) que não tenha desenvolvido um senso crítico suficiente para refletir determinados assuntos; talvez não tenha adolescido em sua retardada mentalidade a competência de compreender o que há por trás do que é dito. Desconfio sinceramente que não tenha passado em suas mãos nenhum livro de Pêcheux ou muito menos Foucault. O que me conforta é que tal tarefa pedagógica não cabe mais a mim.

Voltando à metáfora infeliz, achei interessante como há uma doutrina que degrada o gênero humano. Prega que a sexualidade existe apenas para fins de reprodução – portanto as formas côncava e convexa, representando o encaixe entre os órgãos genitais, como única manifestação possível (na verdade permitida) no ato sexual. A degradação continua ao aplicar tão mesquinha comparação a casais do mesmo sexo, que não formam portanto “casais”, mas apenas “pares”. Qualquer coisa que não rosqueie como um parafuso e uma porca fogem à lógica heteronormalista, é desvio, é pecado, reforçando os preconceitos de quem gosta muito de separar “o que é de deus” e “o que é do mundo”, o sagrado e o profano, os nossos e os outros, os santos e os pecadores. Sim, escolhem um dos pecados daquela lista gigantesca e o elegem prioritário, encabeçando a relação dos que devem ser considerados os critérios de inclusão e exclusão do que consideramos anormal e repudiável. Os pecados deles são menores, obviamente: dobram os joelhos diante da presença esquizofrênica de um espírito carrasco-misericordioso e se sentem logo perdoados em suas consciências autolimpantes.

Não sei, sinceramente, o que eu diria ao tal ex-aluno, se tivesse a oportunidade. Ele exerceu o direito democrático de expor em uma rede social sua (infeliz) visão de mundo, em um espaço que lhe é nominal. E eu, fazendo uso de outro direito permitido pela democracia em que vivemos, excluí o vínculo de nossos perfis na famosa rede social. Desfiz a amizade no facebook, é verdade, pois não sou obrigado a “seguir” alguém que dissemina o ódio, incentiva a discriminação e pratica comigo um tipo de violência simbólica que machuca de forma veemente a dignidade de pessoas homo e heterossexuais.

Não o ignoraria em uma situação presencial, obviamente, aliás, eu adoraria poder sentar frente a frente e descascar seus argumentos, um por um, até vê-lo na nudez de sua ignorância. E depois disso gostaria de ter a chance de mostrar como tal doutrina tem alimentado em uma camada considerável da população um sentimento de rejeição, abandono, julgamento, exclusão; de como tal rejeição têm se transformado em repúdio, recusa, “abuso” da religião, algo que deveria despertar bons sentimentos, mas que no fim o muro entre “santos” e “pecadores” vai ficando tão alto que não nos inspira mais nenhum desejo de suprimi-lo.

Por fim, respeitarei sim seu direito à ignorância, mas lembro que você não tem direito de dizer como Maria, José, eu ou qualquer ser humano viva ou não viva. Seja feliz rosqueando teu parafuso em alguma porca que te queira, eu sou muito mais que isso, eu sou inteiro, e felizmente não dependo de que você concorde ou entenda.